O “Rol Taxativo” de Medicamentos: Reserva do Possível ou Mínimo Existencial?
Confira a fala de Gustavo Liberato, professor do curso de Direito da Faculdade Ari de Sá
Recentemente, o STJ julgou os ERESp. nº 1.886.929, analisando se haveria obrigatoriedade de os planos de saúde custearem medicamentos e terapias não incluídas na listagem da ANS. A decisão pelo reconhecimento de uma “taxatividade mitigada” do conjunto de coberturas se opõe à judicialização das causas de saúde, apresentando, no âmbito das relações privadas, a tendência restritiva reconhecida no julgamento do RExt. nº 657.718, pelo STF, no qual se fixou a tese RG nº 500, a indicar que “o Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais […]”. Esse sentido restritivo, a alcançar tanto a saúde pública como a suplementar, revela preocupações com a sustentabilidade do sistema público e a saúde financeira e capacidade de cobertura das empresas que atuam no mercado de saúde suplementar.
Se o leitor me permite, devo recordar que toda decisão judicial é, em suma, resultado de um ato de conhecimento e de um ato de vontade, como dizia Kelsen. Sendo assim, devemos atentar para o juízo de valor que se apresenta dentre as múltiplas possibilidades interpretativas (“há obrigatoriedade” x “não há obrigatoriedade”). Veja-se, então, a riqueza da contribuição argumentativa de Viehweg, com sua Tópica Jurídica, a destacar a possibilidade de uso, inclusive, de fatores metajurídicos para a criação da “norma de decisão”, como, mais tarde, apontaria Müller, em sua teoria estruturante do direito. Ora, tais fatores metajurídicos compreendem uma multiplicidade de variáveis inseridas no “domínio normativo” (a porção da realidade regida pelo “programa normativo”), dentre elas, a dinâmica econômica de mercado, o que, em si, não invalida o seu uso, mas levanta questionamentos sobre as prioridades nos gastos de recursos públicos e se o aumento constante dos planos de saúde defasados pelos custos em moeda estrangeira seriam, de fato, uma “fatalidade” ou o resultado de um mercado altamente oligopolizado, agravado por uma péssima condução macroeconômica.
Quando o Tribunal Constitucional alemão fora confrontado com o primeiro dos casos do tipo “rol taxativo” (Caso Numerus Clausus I), ao reconhecer a possibilidade de se opor o limite da reserva do quanto seria razoavelmente possível se exigir da coletividade para o atendimento de direitos fundamentais, por igual reconheceu a necessidade de um controle do uso desse limite, de modo a que não se estabelecesse uma “cláusula geral de irresponsabilidade”. No Brasil, em especial, encontrou-se tal critério na Garantia do Mínimo Existencial, a qual consubstanciaria todas as prestações indispensáveis à manutenção de uma vida digna, restringindo a limitação, sempre que levasse à redução da pessoa à condição de uma “mera despesa” (reificação). Ocorre que tal definição sempre traz consigo os riscos de se transformar um mínimo em um máximo existencial, reforçando, inclusive, a concentração de renda.
As decisões do STF e, mais especialmente, do STJ procuram contornar essa dificuldade, deixando em aberto a análise de casos extremos, nos quais se evidencie a total indispensabilidade do fármaco ou da terapia (falta de equivalentes reconhecidos) – desde que: (I) seja reconhecida a eficácia; (II) não tenha sido rejeitado pela ANS; (III) seja recomendado por órgãos técnicos nacionais e estrangeiros, e; (IV) seja realizado “diálogo interinstitucional” do magistrado com peritos – além de, um tanto cinicamente, no STJ, haver sido sugerida a pactuação de aditivos aos contratos, com eventual aumento de preço e da cobertura, apesar da lista da ANS estar em constante complementação.
Será que restringimos demais a Garantia do Mínimo Existencial? Eis um tema de pesquisas futuras.
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